quarta-feira, 20 de junho de 2012

O trem




Indignada e obrigada uma longa viagem, só desce um, de vez em quando em determinada parada. E não volta...

Por isso as janelas dos vagões guardam as marcas das minhas mãos em diversos lugares que passei.

Vagoes envelhecidos, portas emperradas, e eu sentada em uma pequena cabine, que já foi grande, decorada, colorida, cinza e de vários matérias.

Eu fui de repente, independente de minha vontade, para um vagão cheio de sangue...roupas de mulher espalhas pelo chão, escuto o choro de duas crianças...e eu choro junto, por que do lado de fora, debruçada da janela, vi um balanço e sobre ele, um pedaço de mulher, outros pedaços ao seu redor...do céu caiam várias mulheres ruivas, bem vestidas, maquiadas...com ar de alegre doida...ela saiu do vagão...a força...

Quis fugir e entrei em outro...o cheiro era de carne queimada e de novo, roupas rasgadas pelo chão...foi um trabalhador...minha avó surgiu e me falou no ouvido...eu assisti e arranquei minhas roupas, por que eu não pude fazer nada...ele saltou durante o seu trabalho...e também não vai mais voltar.

Outro vagão com cheiro forte de cigarro, mas era alegre, o barulho de uma máquina de escrever tilintava, vestindo uma cadeira, uma camisa do flamengo, ao lado calendários de mulheres nuas...um vidrinho de shampoo, especial para homens, silencioso vagão...tímido mas amoroso. O seu vazio me deixou um vácuo, pois senti falta de uma mão no meu pescoço a me conduzir...um barulho loooonge de um radinho narrando futebol.

Fui jogada de cabeça em outro vagão com chinelos pendurados por todas as paredes, pedaços grossos de músculos estirados pelo chão... instrumentos médicos abandonados pelos cantos, onde um cachorro adoecido, falecia...e eu me ajoelhei e perguntei por que...e várias mãos surgiam pelas janelas, se desfazendo desformes... querendo me puxar, me bater, puxar pelos cabelos...eu queria ficar e limpar a cena...ajudar as mãos, tentei por um bom tempo, mas dali saí de rosto deformado, corpo dolorido e alma enfraquecida.

Eu já estava tão fraca...e fui parar em outro vagão cheio de bonecas, pratinhos de salgados, um delicioso cheiro de alfazema...vários espelhos, vários, me mostrando o que refletir daquela cena e da passageira dessa cabine...dentro dele, eu voava e sorria, criava asas e ouvia hinos...uma máquina de costura...que não me fez falta, pois nada mais me faria falta...a doçura partiu, e eu ali, deitei em posição fetal, sofrendo...faltando um pedaço...

E segue em frente...e em outro vagão tem uma mesa com duas cadeiras, vazias, e sobre a mesa, um tabuleiro de xadrez, ninguém jogando...ao seu lado uma garrafa de Campari amparando alguns Lps...Quince Jones, Ella Fitzgerald...Pink Floyd, Raul e outras misturas...infelizmente um cupim os comeu de fora a fora no mesmo lugar. Um ray-ban sobre uma bandeja ao lado de uma coleção de chaveiros de motel...um com uma bundinha...um com um casal que se mexia...e a sensação de que alguém está ali, mas não está...mas, a rainha se mexe sozinha no tabuleiro.

E segue a viagem...poucos foram coloridos, muitos barulhentos...festivos, bagunçados, entram poucos novos viajantes, mais partiram do que chegaram.
E eu não me dei por conta do caminho, pois eu não estou no comando, sequer me dei por conta do que teria nas bifurcações desviadas, não vi a paisagem...não lembro de quase nada bonito no meio desse caminho, a não ser as poucas estações onde entraram chorinhos estridentes caídos dos céus e colocados em meu colo...

Segue...no início eu sorria demente por que acreditava que não teria fim. Os fantasmas eram apenas minha imaginação, por que os espíritos que me acompanhavam, ainda estavam em seus corpos manifestando e colorindo todas essas cabines, que lembrando agora, já foram sim alegres, musicais...

Mas agora, um pouco cansada da viagem, eu cogito acreditar que a parada final é inevitável...e talvez meu pensamento se dissolva no nada, quando eu passar pela porta, isso não aumenta meu medo...estranho, quando eu não acreditava no fim do trilho eu não via ninguém nesse transporte, apenas a mim e minhas dores...únicas como o meu destino hipoteticamente infinito.

Descrente e cansada, devo até torcer para uma parada final num caos onde tudo se desfaça em gases...apesar disso, percorro voltando por todos os vagões, e vejo diversas, milhares de pessoas que eu não via. Eu olho para cada uma delas e me apiedo, algumas estão também com as duas mãos amparadas na janela...sempre estiveram ali.

Passo por dentro dos seus corpos sinto suas mentes, medos e corações.

Eu não era melhor quando acreditava que havia um senhor condutor, que levava esse trem para uma estrada não tinha fim...pois todas as vozes que partiram, me diziam que eu confiasse nele pois de todos os passageiros ele cuidava. Eu me eximia da responsabilidade de cuidar das cabines, cortinas, mesas e pessoas, eu sequer as via.

Eu preferi não crer mais na existência desse condutor, pois esse homem não permitiria tanta dor em seus vagões...Acho que ele partiu junto com meu pai. E agora estou eu aqui, ciente que todos os caminhos e paradas estão sob o nosso controle...trabalhando em equipe cada um tem o seu papel, responsabilidades com essa viagem.

Se ela termina ou não, não sei...mas se o condutor existir, eu entendo que ele tem mais seres inofensivos para guiar, pois se ele nos presenteou, foi com a capacidade de construir trilhos, caminhos e trens que andam com uma cabine adaptada para escolhermos nossos caminhos.

Nenhum comentário: