quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Parto

Dói o parto,
Dói toda vez que eu parto,
E eu nem sabia que eu partia.
No próximo parto eu já esqueci
O quanto o outro doía.
E eu parto sempre...me parto...
para dentro e para fora.
A pior dor é a minha
E a do Hoje e Agora
Sádico diminuir minha dor
Comparando com a da senhora...
A que se buscar o que tem dentro
e levar embora,
avaliar o que tem fora
para filtrar para dentro.
Movimento...
Nem tudo pode invadir de fora pra dentro...
nem tudo de dentro
é aceitável fora.
O que está mais por dentro
É o parto que
Mais demora...

domingo, 19 de setembro de 2010

Boneca de Carne


Tive muitas bonecas na infância...de pano, de plástico...falantes ou mudas...vestidas e nuas...brasileiras e internacionais.
Adorava uma coleção de pequenas bonecas de borracha, com os cabelos de nylon muito bem feitos e diversificados, elas eram nuas...elas não ESTAVAM nuas, elas eram nuas...elas tinham diferença até de nuance de pele de uma para outra. Lembro que no dia 12 de outubro de 1982 (lembro perfeitamente da data por que era dia das crianças e eu tinha onze anos) por algum motivo meu pai não quis ceder ao mimo de me dar mais uma de presente, alegando eu não ser mais criança. Hoje penso: Que criança quereria bonecas nuas? Mas eu não via sensualidade nelas, ou se via, não sabia.
Eu tinha também uma coleção que era muito importante para mim, que era dos países que meu pai havia passado, em cada estação ele me comprava uma boneca.
Mas minha paixão era uma de pano, com vestido quadriculado de branco e laranja. Ela era uma boneca grávida. Quando levantava sua roupa, abaixava suas “ceroulas”, ela tinha uma barriga de pano que abria através de um velcro, e um pequenino bebê de pano, saia do seu ventre. Fiz muitos partos, amamentava, cuidava e quando terminava, guardava de novo o bebê de pano dentro da barriga.
Uma que meu avô me deu, eu guardei na caixa e nem tirei o plástico que vinha prendendo o cabelo, de tanto zelo que tinha por aquele presente.
Fofoletes...maezinhas...artesanais das mais lindas, minúsculas e imensas (uma maior que eu).
Boneca...
De carne...
Fecho os olhos AGORA, e imagino um bisturi me abrindo. Uma mão confiável tira de meu ventre, uma a uma. Os seus cabelinhos de nylon estão com sangue...as peladinhas são a únicas que já saem peladinhas. Elas não param de nascer, são dezenas...dezenas, dezenas...como cabiam todas dentro de mim?
Final: Minha barriga foi costurada. Olho pra mim e percebo que esse parto durou quase 40 anos. E eu sou agora a boneca, não de pano, de carne, com o ventre costurado e talvez vazio.
Pego o bisturi dessa mão confiável e desesperadamente e sem anestesia, reabro minha barriga para conferir: fato, não há nada além de um pequeno espelho. Eu olho para ele e ele olha para mim. Minhas próprias mãos procedem essa cesariana.
Coloquei o espelho cuidadosamente em minhas mãos para olhar melhor, e me vi por fora em cada pedaço, e repentinamente ele começou a me refletir em todos os tamanhos e idades, começou a refletir meus órgãos internos, a começar do meu coração pulsando, as artérias como rios de sangue, o pulmão respirando como uma floresta, meu sistema digestivo me irrigando e me provendo...toda minha natureza interna fluindo e saudável.
O espelho voltou a me refletir por fora, e para minha surpresa, eu estava tudo em seu devido lugar. Igual.
Resolvi então me reconstruir. Me cortei em pedaços, separando cabeça, troncos e membros. Não posso esquecer de alguns órgãos que eu não quero mais que fiquem guardados: removi meu coração...calma, ele não vai parar de pulsar, o útero e os pulmões.
Recosturei meus pés na minha cabeça. Para que eles tenham tempo de obedecer meus pensamentos sem passar por exemplo, pelo coração.
Uma das mãos, a direita, coloquei dentro da boca, ela sai quando eu falo. E quando ela sai, tem meu coração pulsando costurado.
E esquerda recosturei no lugar certo, lembrei que sou uma canhota, e ela não funcionaria em outro lugar. Ela segura o meu útero. E tudo que crio, passa a sair dele. Tudo que me ataca, ele devora e converte a filhote.
Meu pulmão coloquei em um jardim repleto de plantas selvagens e sensíveis como avencas e violetas, mas também brutas bromélias e espadas de São Jorge. Ele ali vai aprender a respirar livre e não mais estar algemado as pressões do meu coração ou meu corpo.
Trabalho feito, peguei o espelho com as mãos donas do útero. Me olhei desmembrada e singular. Letras saíam do meu coração. Meus pés me guiavam com razão. No jardim, meu pulmão livre trocava ares com as plantas. Não houve rejeição nem sangramentos. Me encaixei a peruca branca de nylon de uma das bonecas peladinhas, o vestido quadriculado da de pano, entrei em uma das caixinhas de acetato: a da boneca de Bruxelas. E a tal mão segura me colocou na minha estante branca, no meio de todas as minhas bonecas. O espelho na tampa do acetato.
Eu agora de frente para essa estante, pego essa caixinha e olho para esse espelho. Me vejo de novo inteira. Mais singular que nunca. Agradeço a essa mão que me ajudou, e peço para me deixar a disposição o bisturi, caso eu queira me reconstruir novamente.
Saio de costas andando, com a maternidade da de pano e a liberdade das internacionais e a alma de minhas bonecas nuas.