sábado, 30 de junho de 2012

Meu Dorian



A dor hoje me fez arrancar minha pele...numa força semelhante a de um apaixonado arrancando a roupa de uma mulher.

Eu fiquei nua, e ao passar as mãos em meu corpo, eu senti relevos, rios e ranhuras, vi minha pele acinzentada...em várias partes do meu corpo, cicatrizes e feridas abertas...não há como nomeá-las como mágoas, prisão ao passado ou desejos de vingança.

É apenas o meu Dorian Gray, que não está numa pintura, mas se embrenha em minha alma, quem sabe alterando meus D.N.As...

Pobre ilusão de quem crê que a violência é uma mulher submissa que fica parada lá, no lugar em que nasceu...ela me acompanha, pois em algumas curvas da minha vida, me deparei com tapas, gritos, socos e pontapés, que gostaria eu de ter o poder alquímico de dissipar.

Por que às vezes eu creio que ela, a violência vivida, nunca me moveu. Mas dilacerações irrompem gerando lágrimas, tal qual um animal uivando no breu da noite, intuindo a chegada do perigo.

O perigo que já foi condicionado a se repetir, pelos meus pais e quem sabe será procrastinado até o fim da estadia dos meus filhos.Eu não consigo ver isso se dissipar...

Hoje um "algoz" do passado, veio me dizer vírgulas, que entraram em mim como exclamações, que me gritaram para olhar para trás...e eu olhei: me deparei com o local em que fiz a curva da dor, da falta de respeito e da violência.

A cada ano que se passa, creio na desmaterialização dessas forças, mas hoje eu as vi como sombras, nos cabelos do meu anjo descendente recém nascido.

E quando esses eventos me fazem olhar pra trás, eu sinto a dor de um bicho, acrescida as lamentações humanas...e por isso, eu nem sei mais o que sou, quem sabe um ser intermediário entre lobos e homens, cujas garras saltam invisíveis em um simples caminhar nas ruas, quando vejo coisas que para minha "humanidade" dilacerada, não fazem sentido algum.

Eu me sinto a usina do sofrimento alheio, pois em todas as fisionomias doridas, encontro pedaços de minha identidade.

O que fazer se alguns monstros meus me puxaram pra fora, de tanto que tive que confrontá-los de frente, o mais dentro de mim o possível?

E isso eu sou.. uma criatura montada em pedaços de mazelas minhas e alheias...que no momento maior da tortura, se vê bem de dentro em cantos obscuros, cemitérios de diversão...perambulando entre as covas dos meus mortos, tentando ao menos lançar coroas e guirlandas para homenagear meus castigos.

É essa penumbra que está sob a carcaça, que está sob minha pele. Um ambiente tentado ser reconstruído e lapidado, por meus personagens que só tem força de marionetes, pois só o onírico pode organizar ou embelezar os meus palcos queimados.

Por sorte, aprendi a parir fantoches eficientes, e eles me trazem as letras para eu manipulá-los, então enquanto escrevo, eles vão trazendo dos céus carruagens repletas de cores, pincéis e brinquedos, e lenços...e vão me consolando, enquanto pintam as minhas paredes com Tolouse, me dão um lenço para eu secar meu rosto e me fazer sorrir.

Eles seguem mambembes e malandros, montando mais salas floridas do meu velório do dia , de vários personagens que já tive, assassinados e nascidos.

Me levam para um lugar e me mostram, de pernas abertas e uma fêmea gritando, puxando mais uma vez minha nova criança nascida, tenho vidas curtas entre uma dor e outra. Quem me empurrou, me matou, me ressucitou? A princípio a violência no seu estado mais nu e cru...que podia ter me levado e jamais me trazido de volta, ou ter me deixado simplesmente estacionar, mas agora, sou eu quem faço questão de sempre morrer e nascer.

E depois de tudo composto, ou recomposto, essa criaturas abrem o meu caixão e me pegam pelas mãos, e apagam todo o resto de dor vermelha ou cinza...e me sussuram que cresci mais um pouco, e me pedem para eu sair do mar, emergir das emoções, e trafegar para a razão.

Olho pro mundo, o reconheço e tenho piedade de tudo e de todos, do algoz e da vítima, mas não sei definir se as ruas são  meu espelho, ou eu sou delas. Só sei que como Dorian, minha imagem externa não traduz um milésimo dos meus tormentos. E infelizmente às vezes eu preciso olhar pra eles e continuar correndo, correndo na outra direção.

Então eu trafego para a direção da razão, logo depois de acarinhar essas feridas, sem reclamar, fantasio que são simples tatuagens da alma, e visto minha pele de volta. E meus personagens mambembes puxam meu rosto pra olhar pra fora, e partem me deixando sob a tutela  de outras feridas.


Surgem então, as parte do meu Dorian, que são meus personagens intelectuais, e eles me  mostram os  mestres que me ensinaram que felicidade pode ser melancolia, visto que ela não é simples sinônimo de sorrir, sim de plenitude, o que fazer se demos nomes únicos para conjuntos de sentimentos indescritíveis? Da mesma forma que determinados desmazelos físicos são irreversíveis, determinadas condições humanas, individuais, também. Nunca obrigue alguém a sorrir, nunca subestime o poder da dor daqueles que a tem costurada em suas vísceras. Nunca, mas nunca diga para essa pessoa, que ela não é digna do sucesso. Não tente bater na sua porta aos domingos, com um folheto de como alcançar o céu, muito menos com um livro de auto-ajuda...finja não ouvir quando ela disser que nada material, tem  tanto valor o quanto dizem...

Esses sábios gritam dentro de mim: Adequar mazelas à vida é assunto de acessibilidade!!! Você se importa de como os cegos tem acessos aos ônibus, se todas as raças tem direitos iguais, se a medicina curará as doenças, se o lixo está sendo reciclado...saiba que os que não sorriem e que tem pintado em si as dores, precisam viver e também são belos. Caso você não compreenda o que estou dizendo, talvez seria um dos que não compraria um dos quadros de Van Gogh... Lembrem-se dele toda vez que não respeitarem ou compreenderem “diferenças”, que é algo pertinente não apenas ao âmbito físico, a diferença está na alma. Estaremos perto de sermos  tolerantes, quando enxergarmos que não respeitamos sequer diferenças emocionais, condições intelectuais, nuances psicológicas diferentes dos padrões estipulados...isso é tão estúpido que impede que cada ser humano, utilize suas dores para crescer, e ela é a mais sábia das professoras...A sala de aula em que ela não está, todos sorriem como dementes...

Erikaaaaa...ainda vivemos em uma época em que se acredita que “felicidade” é uma condição e um conceito para conseguir um bom emprego e atingir metas da nossa "sociedade do espetáculo", e se resume "felicidade" como um gráfico de interseção entre os risos que o sujeito dá e sua capacidade de resiliência, é capaz até de existir uma fração para isso. Me pergunto como ser resiliente a um falso amor, a um “não desejo”, meu maldito bendito Dorian não digere essas "verdades", mas aprender a driblá-lo é uma arte necessária para a sobrevivência.

Mas apenas peço, que me deixem a sós com minha inexorável condição interna, só nela, eu e muitos, muitos outros, temos a capacidade de existir, e é ela que nos ajuda a enfrentar o mundo real. Nos breves momentos em que fazemos o Dorian dormir, alimentamos as necessidades do nosso corpo, com a alma de barriga cheia. Nada mais me importa...

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